quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Póstumas Lembranças do Bonde das Três.


Perdi o bonde. Vi a bola passar, o menino correr, e o sol deslumbrar a banda a tocar.
Perdi o bonde. Vi a menina crescer, sua beleza obstinar, e o coração entristecer.
Perdi o bonde. Vi a construção da casa, um jardim sem rosas, e um anjo sem asa.
Perdi o bonde. Vi a criança nascer, a chuva cair, a certeza expandir, e a fé entoar.
Perdi o bonde. Perdi o chá, a visita das três e o ensejo do lar.

Perdi o bonde. Vi o campeão gritar, a vida aplaudir e o perdedor chorar.
Perdi o bonde. Vi as ondas do mar, a barraca se abrir, os castelos na areia e um pequeno a rir.
Perdi o bonde. Vi a briga no quintal, a roupa no varal, e a poeira do beiral.
Perdi o bonde. Vi a cesta de doces e o café quente, vi bichos, vi poetas, lutas e gente.
Perdi o bonde. Perdi o ar, perdi o medo e o cartear.

Perdi o bonde. Vi a hora passar, o banco abrir, e o dinheiro comprar.
Perdi o bonde. Vi o prédio mais alto, a tristeza intermitente, um pulo, um salto.
Perdi o bonde. Vi o remédio curar, uma estrela brilhar, e uma carta chegar.
Perdi o bonde. Vi a mesa já pronta, vi a luz a apagar, vi a vela acender a hora do jantar.
Perdi o bonde. Perdi o tempo, perdi o relógio e a noite a chegar.
Perdi o bonde. Não pude esperar. Vi a vida passar, às três da tarde num dia qualquer, às três da tarde no bonde milenar.

Haia Saer’.